O Ainda Sou do Tempo retorna às entrevistas, desta feita a Rui Zink, que recorda um pouco do seu passado, a sua passagem pelo programa da Noite da Má língua, e ainda a sua obra literária.
Rui Zink nasceu a 16 de Junho de 1961, em Lisboa, começando a publicar livros na década de 80, e colaborando com vários projectos jornalísticos nos anos 90, fazendo parte de redacções como a do Independente ou a revista K. Na televisão ficou conhecido como participante na Noite da Má Língua, sendo um dos integrantes originais e ficando por lá até ao final.
Eis a entrevista possível:
Ainda Sou do Tempo: O Rui já uma vez falou de como existe uma geração, a minha, apelidada de geração Dartacão, como chamaria a sua?
Rui Zink: Geração Feliz. Deu mesmo um documentário sobre um grupo de teatro de guerrilha que um grupo de amigos criámos, «Felizes da Fé». O documentário da Leonor Areal está no youtube.
AST: Pode dizer-nos um pouco de como era a sua infância? Qual era o seu tipo de brincadeira preferido?
RZ: A volta a Portugal em bicicleta. Era com caricas, nas bordas dos passeios em torno do bairro e durava semanas. Mas nunca consegui ser mais rápido que o Joaquim Agostinho.
AST: Recordando a sua infância/adolescência, e o começo da TV, qual era a sua série/desenho animado de eleição?
RZ: O Bip Bip, perseguido pelo Willy Coyote. O rufião (ou bully, como agora se se diz) perdia sempre.
AST: Como foi viver o período da revolução, como é que uma criança via as mudanças ao seu redor?
RZ: Criança?! Eu não vim aqui para ser ofendido… Eu tinha quase 13 anos quando se deu a revolução. Ou seja, já tinha olhos de ver. E a minha casa ficava a dois minutos do Rossio, era só descer a calçada. Comecei a viver o 25 de Abril às 10h da manhã, portanto. E em minha casa havia tradição de resistência, lia-se a República de Raul Rego, havia um olhar crítico. Vi também a contra-revolução começar cedo, pois um dos centros da intriga era precisamente o Rossio, onde as pessoas se juntavam em magotes para dizer mal do regime. Do novo, que no anterior estavam satisfeitos, esses que vociferavam «contra a nova ditadura». Penso sempre nesses energúmenos, quando agora oiço lancinâncias contra a terrível «ditadura do politicamente correcto».
AST: Tudo fala sempre dos míticos anos 80, já era um jovem formado por essa altura, como viveu essa década? Porque acha que todos ainda se recordam da mesma com carinho?
RZ: Não havia sida. Havia liberdade, havia ânsia de liberdade, havia um descobrir caótico e anárquico da liberdade e não havia sida. Foi o nosso período de amor livre, tipo anos 60. Uma festa. E não havia sida até que, a meio da década, passou a haver.

AST: O Rui teve sempre ligado de alguma forma ao mundo da banda desenhada, já criou algumas obras neste género de literatura, tendo feito uma tese sobre o assunto na faculdade. O que o levou a escolher esse tema? Quais as BD’s que lia na sua infância/adolescência?
RZ: A minha geração teve, graças a Vasco Granja, Dinis Machado e à Bertrand (salvo erro), acesso ao melhor da BD que se fazia então e uma coisa única: uma revista Tintin com o melhor (ou quase) das duas então melhores revistas do mundo: o Tintin e o Pilote franco-belgas. A variedade que a revista trazia era incrível, e creio que o dedo de Vasco Granja foi essencial.
AST: Também fez uma tese sobre o grande José Vilhena, foi um autor que o marcou muito? Podia só dizer-nos um pouco sobre o impacto que esse autor teve no nosso país?
RZ: Vilhena foi para o humor escritor, entre 1960 e 1974, o que a Gulbenkian foi para a cultura: supriu um vácuo. Outros poderiam fazer melhor? Talvez. Mas não fizeram.
AST: O Rui é também um autor, já publicou obras que vão desde a banda desenhada a romances, passando por contos e até incursões por peças de teatro ou óperas. Qual o que lhe dá mais prazer a escrever? Ou o que sente mais afinco.
RZ: Topo tudo. Sou um grafómano, até no Facebook tenho prazer em escrever.
AST: Existem obras suas que tiveram bastante sucesso, mas muitos até desconhecem esta sua faceta. Sente que podia ser mais publicitado, ou é algo que também não lhe interessa muito?
RZ: Só um idiota responderia que não interessa chegar a mais gente e, pelo caminho, ganhar mais direitos. Acho que alguns livros meus – O Anibaleitor, A Palavra Mágica, O Suplente, A Instalação do Medo, o Halo Casto (com o Louro), Rei (com António Jorge Gonçalves), O Bebé que não gostava de televisão (com o Manuel João Ramos) foram óbvia e descaradamente injustiçados ao não receberem um prémio em Portugal no ano em que o podiam ter feito. E reparo, por vezes com sórdida alegria, o modo como rapidamente apodreceram outros mais laureados, enquanto que os meus livros viajam no tempo e no espaço. Devagarinho, mas viajam. Qual a importância dos prémios? Nenhuma, mas ajudam o texto a circular melhor. Um exemplo: A Instalação do Medo podia estar neste momento a ser útil a leitores em 20 países, em vez de em apenas seis.A pergutna atrás desta pergunta é: «Está disposto a ceder na forma e no conteúdo – isto é, a abardinar – para chegar a mais gente?» Aí a resposta é não.

AST: Do que se trata o seu mais recente trabalho, O Livro sagrado da Factologia?
RZ: Falai de livros falhados… Trata da não-verdade e de um futuro que, não nos pomos a pau, será sórdido: tribalista e sectário.
AST: Como foi a participação na Noite da Má língua? Recorda-se de como era a reacção do público e das figuras públicas?
RZ: A minha memória já não é o que era. Foi uma honra ter integrado aquele elenco e ser ainda hoje amigo dos meus compinchas. Acho até que somos família. Só esse espírito solidário permitiu aguentarmos a borrasca das reacções diárias. Muita gente gostava de nós, mas muita gente não gostava mesmo nada. Muitos dos programas polémicos de hoje têm a nossa marca, são de alguma forma nossos herdeiros – para o bem ou para o mal. O que nós fazíamos era free jazz, rock sempre a abrir, circo-ópera, aristografia punk. As figuras públicas, o mais das vezes, percebiam que a melhor forma de nos vencer era tentar seduzir-nos. Alguns conseguiam, o azar deles é que – sem maldade – nós não conseguíamos resistir à volúpia do directo e de uma boa piada. A mim só me tentaram bater um par de vezes, mas ao Manuel, à Júlia, ao Miguel e à Rita por vezes tinha a sensação de que passava a vida a livrá-los de caldinhos.
AST: Apesar da hora que era transmitida, lembro-me de na manhã a seguir no liceu, muitos ficarmos a falar do que tinha acontecido no programa. Tinham noção de que estavam a chegar a uma geração mais nova, que ainda nem idade para votar tinha por vezes?
RZ: Não. E ainda bem que não tínhamos. É como dizer a uma pessoa que o que mais apreciamos nela é a sua espontaneidade. Durante um pedaço vai ficar constrangida.
AST: Sofriam algum tipo de pressões, ou era imposta alguma limitação, sobre o que podiam ou não falar?
RZ: Não. Pressões devia haver, mas não chegavam até nós. O Emídio Rangel durante dois anos defendeu-nos sempre, tanto quanto sei. Depois, a natureza da relação da SIC com o poder institucional mudou (e é normal, c’est la vie) e aí não me custa a admitir (embora não tenha provas) que um programa cujos participantes eram livres, independentes e indomáveis ficasse implícito que tinha de cair. É a diferença, digamos, entre nós e programas tipo o Eixo do Mal (que dura á bué bué mas não tem um décimo do nosso impacto) ou o Governo Sombra: eles também não são completamente burros, mas nós éramos leões, eles são gatinhos fofinhos.
AST: Qual a memória mais marcante de ter feito esse programa para a SIC? Encararia com bons olhos um regresso?
RZ: A memória mais marcante é a de um almoço em Buarcos há uns dez anos, quando fomos fazer ao Casino da Figueira uma sessão única. Rimos tanto ao almoço e estávamos tão felizes de nos rever e foi tão divertido que, à noite, só o Manuel Serrão estava em forma. Eu passei o show todo a tentar não vomitar, a Rita estava em coma, o Miguel tinha feito uma operação e mal se podia mexer, a Júlia volta e meia adormecia.
AST: Como acha que esta geração actual irá ser apelidada no futuro?
RZ: Eu sabia que chegaria o momento de pagar a factura da impressora que me ofereceram para aceitar esta entrevista. Ok, então aqui vai: Geração Worten. Mas eu preferia Geração Aifónica…